Ao meu curso , um bravo curso

A primeira noite na Escola Naval foi uma longa noite , passada nos escombros de um navio que outrora havia sido um dos maiores estandartes da nossa Armada.
Foi uma noite de insónia permanente e tosse nervosa , cheia de chilreares passareantes de ratos excitados , de calores de corpos suados , de saudade do quarto limpo da casa afastada e , sobretudo , uma noite comunitária com estranhos. No fundo , naqueles beliches soltos de um porão que nada dizia , estavam estupidamente deitados dezenas de adolescentes que nunca se conheceram e que tinham obrigação , doravante , de trilhar uma única e solidária esteira.
Os mais velhos , os Senhores Guarda-Marinhas ,vigiavam-nos . entre troça e mando , com um sarcasmo estudado e uma ameaça velada , que nos faziam estremecer , tanto no corpo como no espírito. E isto provocava nos "marinheiros " batidos da reduzida e decrépita guarnição de puta velha e abandonada que já era essa grande Nau de outrora , um abafamento em vinho traduzido em gargalhada , ao verem e ouvirem e gozarem aquela educação forçada dos "mancebos" acabados de chegar.
Foi uma longa noite , uma noite sinistra.
Um ano depois , parte de nós , por uma estranha brincadeira que agora e sempre se vê o que custou , tropeçou no caminho , não passando um obstáculo que tão simples afinal era e que carimbou a nossa farda , o nosso destino , a nossa vida.
E nova noite se repetiu , claro está , mas esta com ar veterano contemporizador que , na praxe , goza o seu direito e a sua imunidade. A absorção dos "velhos" pelos "novos" foi paradoxalmente simples , rápida e amiga, fazendo com que a união dos desconhecidos se fosse fermentando , até se esquecer que houve uma primeira noite.
E a praxe , essa coisa inquisitória tão injuriada e combatida , foi o que largamente contribuiu para a nossa formação e muito nos ajudou a enfrentar situações que posteriormrnte se nos depararam na dificil vida que a Marinha , com tão poucos meios de ensino e prática , tal era a pressa de fazer oficiais , nos não conseguia prevenir.
O nosso patrono , Oliveira e Carmo , heroi de uma India perdida que precisava de herois , deixou nas águas do Oriente o seu corpo , partido em dois , e o seu navio sepultado no mar, sem uma cruz , um monumento , uma rua , um beco de galé.
E lá se terminou um curso , se enjoou numa inesquecível viagem , se jogou mil bricadeiras , se cimentou grande amizade. Saímos da Escola com uma Espada , novinha em folha de Pátria , exemplar encadernado de "Os Lusíadas" com dedicatória de Ministro e o tal carimbo na testa da classificação no curso que nos vai acompanhar , grilheta insaudável , por toda a vida.
A partir daí foi o dispersar da banana seguindo uma carreira de mil misteres em trilho vário que todos tivemos de vencer, sem nos preocupar ou não se qualquer preocupação teria havido em colocar no A quem nasceu para lá , ou no H quem nasceu para cá..Mas as nuvens negras que , porventura, ensombraram a gloriosa União e amizade de Irmão que deveríamos de manter , não conseguiram ser suficientes para perturbar o navegar tranquilo neste mar leal , e não aparecem sequer , por tão insignificantes , registadas na carta do tempo.
Houve quem , prematuramente , deixasse o botão de âncora (porque a farda , a verdadeira , nunca nos deixa) , para segtuir outras chamas e se orientar por outras estrelas , enquanto outros , a maioria , continuaram a trilhar esse Mar e a enfrentar a tempestade ,tanto nos dias de herois inesquecíveis , como depois e hoje , no de palhaços dispensáveis.
Singraram assim no nosso curso , com Oliveira e Carmo olhando pela estrela do oriente , Almirantes , distintissimos outros Oficiais , empresários , brilhantes tecnicos , herois de guerra altamente condecorados , mas sobretudo grandes Homens , Homens de sol e mar de dia bom, com palavra , com estima , com franqueza , com carinho. Homens bons , que nunca fizeram mal a ninguém e que só queriam e julgavam estar a ser , marinheiros.
Somos firmes e já mostramos que podemos ser capazes de nos unir , em força mas com inteligência , como o fizemos no escandalo das promoções por diuturnidade em 1969 e nas célebres duas entrevistas com o saudoso Ministro e grande Marinheiro , Pereira Crespo ,em 1972, na dádiva do dia de trabalho para a reforma agrária em 1975 , para conseguir ideais límpidos e generosos , mesmo em tempos em que se não viam por aí tantos democratas e homens de esquerda de "sempre".
Mas sempre fomos ingénuos . E acabamos por sofrer . tão injustamente , o ferrete dessa ingenuidade.
Resta recordar , fazer um livro , com um prefácio a contar , na exaustão , quem foi o nosso Patrono , a recordar os nossos professores , ano por ano , cadeira por cadeira , Homem por Homem, os nossos Amigos e Companheiros que abandoram a Escola , os que se juntaram a nós , as nossas carreiras , um por um , com tudo lá dentro.
Vamos fazer?
Merecemos isso.
PS: Parte deste texto já o tinha escrito muitos anos antes e proposto para publicação na Revista da Armada. O nosso saudoso e bom Amigo Com. Malheiro do Vale censurou-o , após imensas hesitações. Mas creio que ficou sempre com algum remorso.
Acabei por o publicar , creio que nos nossos 25 anos , mas já não sei onde.
Este é por hoje . Pelos nossos 41 anos de saída da Escola naval
Comentários:
Bravo, Manel! Chorei, comovido, digo-o sem vergonha. Uma observação apenas por aqueles que, ao longo destes anos,nos foram deixando mas que permanecem na nossa memória.
Muito obrigado por este texto magnífico!.
Um abraço,
Tenho a certeza que todos nós subscrevemos o comentário do Jorge Beirão Reis
Bom começo do livro que há muito se pensa em elaborar. Claro que escrito pelo MPM não é de espantar pois já há muito que nos habituou a boa e sensível escrita!
Temes
...também me comovi! E pensava que eu era um escritor !
Boa Manel ... vamso a isto!
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